Nas primeiras consultas, nem os médicos acreditavam que ela, tão jovem, poderia ter um tumor. Alguns suspeitavam que ela possuía um nódulo benigno de gordura ou algo de menor gravidade. “Um deles confessou que demorou a me contar o resultado porque decidiu enviar a lâmina da biópsia para outros laboratórios, para ter absoluta certeza que se tratava mesmo de um carcinoma invasivo.” Cerca de dois anos após o diagnóstico, período em que Scarelli foi submetida a cirurgias e dezenas de sessões de quimioterapia e radioterapia, uma nova notícia a surpreendeu: a mãe dela também estava com câncer de mama. O novo caso da doença na família — somado ao fato de o avô materno dela ter falecido em decorrência de um câncer de pâncreas — foi suficiente para que os médicos sugerissem que mãe, e depois filha, fizessem um teste genético à procura de mutações relacionadas a um risco elevado de desenvolvimento de tumores. Após a análise do DNA, a suspeita se confirmou: ambas possuíam alterações no gene BRCA2, que aumenta a probabilidade de desenvolver células cancerosas na mama (e em algumas outras partes do corpo). À época, os testes genéticos no câncer de mama haviam ganhado destaque no mundo todo depois que a atriz americana Angelina Jolie — cuja mãe morreu de câncer — divulgou em maio de 2013 que retirou as mamas após descobrir uma mutação genética no gene BRCA1. Dois anos depois, a artista também passou por um procedimento para remover os ovários. “Hoje, tenho 35 anos e sou mãe do Bento, de 2. Mas não foi nem um pouco fácil chegar até aqui”, diz Scarelli. Nesses mais de dez anos desde o diagnóstico, ela enfrentou (e continua a enfrentar) uma série de dilemas — e precisou aprender a tomar decisões compartilhadas com a equipe médica sobre o tratamento do câncer, o acompanhamento de saúde e até sobre o rumo da vida pessoal e familiar.
“Quando descobri que era uma paciente com mutação, a orientação que recebi era de não contar para ninguém, porque a sociedade não estava preparada para nos ouvir” , lembra Scarelli. “Por esse motivo, fiquei durante muitos anos dentro do armário, lidando com o fato de eu estar num limbo: eu não tenho mais o câncer, mas também não posso receber alta médica por causa da mutação que carrego.” Mas, de uns tempos para cá, ela diz que se sente mais estimulada — e menos preocupada — em falar abertamente sobre a mutação que carrega no DNA. “Mas eu entendo que muitas mulheres ainda não podem fazer isso, por questões como a relação no trabalho ou mesmo os custos do plano de saúde”, pondera ela. A privacidade sobre este assunto é algo importante para Joana Guimarães*, que pediu para não ter o nome identificado nesta reportagem. Ela não tem — e nunca teve — câncer de mama, mas carrega uma mutação no BRCA2. Ela fez essa descoberta depois que uma prima foi diagnosticada com o tumor e teve uma recidiva da doença há três anos. “Havia um longo histórico de câncer de mama na família. Minha avó teve a doença bem jovem, aos 40 e poucos anos, assim como algumas primas da minha mãe”, detalha ela. A mãe de Guimarães realizou o teste e descobriu a mutação. Com isso, havia uma chance de 50% da próxima geração — no caso, Joana e a irmã — também portar o BRCA2 mutado. Nesses casos, quando uma determinada mutação é encontrada no genoma de uma paciente, o protocolo é realizar o teste em familiares de primeiro grau, como mães, irmãs ou filhas. Se o resultado é positivo, a testagem é expandida para mais parentes, como as primas, e assim por diante. No caso de Guimarães, o teste revelou que ela havia herdado a mutação. Já a irmã dela, não. “Eu decidi fazer o teste porque a partir dele posso tomar atitudes que diminuem meu risco de ter um câncer”, explica ela. Mas, afinal, quando um teste genético que investiga as mutações relacionadas ao câncer de mama é realmente indicado e pode fazer a diferença? O médico Rodrigo Guindalini, da Oncologia D’Or, explica que, de cada 10 casos de tumores que acometem o tecido mamário, um está relacionado a fatores genéticos e hereditários. Até o momento, a ciência já descreveu quase 15 genes que estão associados à predisposição para o câncer de mama — desses, os BRCA1 e BRCA2 são os mais frequentes. A presença de algumas dessas mutações chegam a aumentar o risco de desenvolver um tumor ao longo da vida em mais de 80%. Isso significa que, segundo as diretrizes atuais, não é toda mulher — e nem sequer toda paciente com câncer de mama — que tem uma indicação para realizar os testes genéticos. “Para indicar esse exame, nós levamos em conta alguns critérios, como o histórico daquela família, a idade no momento do diagnóstico e até algumas características do tumor”, detalha Guindalini, que também é consultor científico do Instituto Oncoguia, uma ONG voltada a pacientes com câncer e familiares. Por ora, os testes genéticos contra o câncer de mama não são oferecidos na rede pública brasileira. E, mesmo nos convênios de saúde, eles só estão cobertos para pacientes com menos de 35 anos, em que é possível demonstrar claramente uma suspeita de que a doença tem algum traço hereditário (como mais casos entre familiares próximos). A boa notícia é que o custo desses exames caiu consideravelmente nos últimos anos. Há cerca de uma década, fazer o teste para avaliar a presença de uma única mutação saía por cerca de R$ 10 mil. Hoje em dia, é possível realizar um painel genético — que avalia diversos genes de uma vez só — por algo em torno de R$ 2 mil. Tanto médicos quanto pacientes ouvidos pela BBC News Brasil defendem a necessidade de ampliar esses critérios de testagem e disponibilizar esse recurso no Sistema Único de Saúde — até porque essa informação pode fazer toda a diferença no tratamento e no acompanhamento das mulheres que carregam as tais mutações, como você entende a seguir.